8 de outubro de 2010

Foge Maria, foge!




Tão segura que andas. Passos tão assertivos, numa correria desenfreada pelas avenidas da vida. Conhece-las tão bem, sabes onde todas elas te levam, não há becos sem saída, tens respostas para tudo.
É fácil, é tão fácil viver assim.
Adormeces a pensar em nada.
O teu mundo é perfeito.
Ou quase perfeito… Pois essa coisa das guerras, das fomes, das pornográficas assimetrias na distribuição da riqueza, das migrações em massa, da falta de sustentabilidade ambiental, das perseguições étnicas, religiosas ou políticas, que aborrecidas são! Mas que culpa tens tu? Sim, que culpa poderás ter tu?
Meros danos colaterais que o sistema se encarregará de atenuar ou quiçá até eliminar, com a preciosa ajuda do tempo, vector que corre inexoravelmente em desfavor de todos, se bem que muitos disso não se apercebam.
Afinal de contas não nasceste em Fallujah, não pariste em Mogadíscio, não semeaste no vale de Zongo, não tens de comer em Bihar, no seio da comunidade de Musahar, ou tão pouco te achas na saga de tentar sobreviver em Chiapas ou na Palestina.
Quando é a própria humanidade a gerar tanto pária, ignorante, incapaz ou mal formado, não haverá lugar a equações exactas ou a quocientes de resto zero. A contabilidade final saldar-se-á pela soma de uns quantos milhões de mortos, pela inevitabilidade da terra por cultivar ou das mãos sem laborar.
Salvar-nos-á, como ontem, uma moralidadezinha prescrita em jeito de ética protestante, ou judaico-cristã, que tudo sublima, numa dita liberdade individual, numa qualquer guerra santa ou civilizacional, em que nada se questiona e tudo se apaga, como a luz por magia, apaga as sombras chinesas.
É a luz que te ofusca e impede de ver mais além.
Vai por mim, Maria!
Aburguesaste-te no saber. Não precisas de procurar, escolher, decifrar ou comparar, demitiste-te de pensar. Já tudo sabes, e o que não sabes ou desconheces, os Marcelos & Vitorinos, desta aldeia, tratam de to dar a conhecer. Entram em tua casa, acompanham-te ao jantar, sem que para tal os tenhas convidado, e tragam-te a papinha toda. Só tens de a digerir. Sem canseiras.
Já abortaste? Sim. Vais votar sim, na lei do aborto? Não.
É tudo tão simples, não é?
Sobre que sectores recai uma menor incidência fiscal? A banca e toda a actividade especulativa. Quem paga as mais elevadas taxas de impostos? Quem produz.
É tudo tão fácil, não é?
De quem é a culpa da actual crise económica e financeira? Ninguém está interessado em explicar-to. Quem vai pagar esta mesma crise? És tu.
É tudo tão evidente, não é?
Atreve-te Maria! Vem connosco!
Se bem que mais sinuosas, sombrias e incertas, as ruelas desta vida são mais pitorescas e singulares que as iluminadas avenidas que costumas trilhar.
Há tanto mundo, para além do teu. Não tenhas medo da penumbra, procurando pelas tuas próprias mãos, usando o teu livre arbítrio, alguma coisa hás-de encontrar. Pensa por ti e não receies os personagens que por cá habitam.
Somos os indigentes que o neo-liberalismo pariu. Somos cientistas, poetas, cantores, palhaços, enfim trabalhadores, amigos e solidários. Sabemos para onde vamos? Talvez não. Mas sabemos seguramente para onde não queremos ir. Não esperamos amanhãs que cantam, nem alimentamos nostalgias por revoluções que ficaram por cumprir.
Queremos que venhas connosco, sem declarações de ódio, mas por amor à liberdade, sem sofismas, mas com uma pitada de pretensiosismo, em busca de algumas verdades, e se a tal te dispuseres,

Foge Maria, foge!



5 comentários:

  1. Brilhante, simples e o reflexo de uma sociedade em que de alguma forma todos nos revemos...

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  2. Do melhor que tenho lido nos últimos tempos!

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  3. Não basta fugir, é necessário fugir-se para um lugar melhor.

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  4. Texto muito bom.
    Parabéns ao autor ou autora:-)

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